Nota do Núcleo de Estudos Transdisciplinares em Educação Básica sobre a utilização da educação a distância adotada pelas redes de educação para manutenção do calendário escolar de 2020

Postado em 23 de abril, 2020

O Núcleo de Estudos Transdisciplinares em Educação Básica da Universidade federal do Pará vem a público, manifestar sua preocupação a maneira pela qual a Educação a Distancia (EaD) vem sendo adotada, por parte das redes de ensino em nosso estado.

Como é de amplo conhecimento da sociedade, os governos estaduais e municipais, por meios de Decretos, promoveram a suspensão das aulas em escolas públicas e privadas, como medida vital para diminuir o efeito da propagação da pandemia pela Covid 19 em território paraense.

Algumas autoridades educacionais, amparando-se na legislação educacional em vigor, têm adotado a EaD como estratégia de garantia do ano letivo de 2020. No entanto, esta medida não foi antecedida por estudos prévios e muito menos pela adoção de ações formativas destinadas aos educadores e nem por medidas didático-pedagógicas necessárias para que haja êxito na sua implementação.

Para que seja adotada a EaD na educação básica, mesmo nas situações previstas na legislação, um conjunto de pressupostos precisam ser levados em consideração, de maneira a proporcionar a oferta de uma educação de qualidade, direito de todos os estudantes, sem exceção: planejamento do processo ensino-aprendizagem, organização curricular, relação tempo-espaço, didática, relação professor-aluno, entre outros aspectos, adquirem, no ensino não presencial, características e especificidades próprias, o que deve demandar, por parte da escola a implementação de uma nova organização didático-pedagógica (planejamento, sistematização, didática e avaliação), distinta e adequada, sobretudo, por exigir uma nova dinâmica para o trabalho pedagógico de gestores e docentes.

É forçoso reconhecer que a maioria dos educadores que trabalham nas escolas – sejam docentes ou gestores – não recebeu formação inicial para desenvolver suas atividades laborais por meio da EaD. Poucos, também, foram os que receberam formação continuada sobre esta modalidade de ensino. Responsabilizá-los, individualmente, por sua implementação, no afogadilho, sem que qualquer preparação, orientação e suporte adequados lhes tenham sido garantidos pelos mantenedores das redes, atenta, gravemente, contra a dignidade profissional desses sujeitos. Atribuir-lhes culpa pelo possível fracasso do que está sendo feito é, no mínimo, ilegítimo e imoral.

É do nosso conhecimento que docentes e gestores estão sendo obrigados, principalmente nas escolas privadas, a improvisarem atividades didático-pedagógicas, que deveriam ser concebidas e implementadas adequadamente; subjugados pela pressão que vêm recebendo de mantenedores, mais preocupados em justificar as mensalidades que cobram, do que garantir educação escolar de qualidade, socialmente referenciada.

A educação não é mercadoria e não pode ser assim tratada. Os estudantes são sujeitos de direito e entre seus direitos está o do acesso a uma educação escolar que amplie seu arcabouço cultural e contribua para o seu desenvolvimento, no âmbito de uma convivência social participativa e fecunda. Por isto a EaD não pode ser reduzida a uma espécie de fast food pedagógico. Os mantenedores das redes precisam levar em consideração que as pessoas não aprendem da mesma maneira e no mesmo ritmo e, por isso mesmo, devem garantir a efetivação de processos de mediação do conhecimento que sejam diferenciados, sob pena da intensificação da produção do fracasso escolar.

Os mantenedores das redes, para adotarem a EaD, mesmo em situação
emergencial, precisariam levar em consideração, dentre outros aspectos, que existe diferença entre a linguagem adotada na modalidade presencial e aquela mediada pelos recursos midiáticos; que há total mudança na forma de interatividade entre os sujeitos que participam do processo; que há necessidade de incorporação de um novo design educacional; que em razão do novo cenário onde ocorrem as práticas pedagógicas, fazem-se necessários novos mecanismos de estímulo sensorial e cognitivo.

Contextos educativos diferentes exigem adequações didático-pedagógicas. Desta forma, não podemos concordar que a EaD seja reduzida ao trabalho de “postar conteúdo em plataforma”, como majoritariamente estamos testemunhando no estado do Pará. Os estudantes estão sendo expostos a uma quantidade inaceitável de conteúdos, sem que processos adequados de mediação lhes sejam assegurados. Responsabiliza-se as famílias por tarefas que não lhes compete, como a de didatizar os conhecimentos escolares.

A utilização da EaD requer dos educadores competências inerentes a um novo fazer pedagógico e, para adquiri-las, há necessidade de formação apropriada. Soma-se a isso o fato de que, na maioria das vezes, não lhes são fornecidos os recursos necessários para a preparação, acompanhamento e avaliação das atividades didático-pedagógicas que estão sendo encaminhadas aos estudantes, em suas casas.

Para atender às exigências impostas pelos mantenedores das redes escolares, os docentes estão sendo submetidos a uma sobrecarga de trabalho. A fadiga, a frustação e o adoecimento estão sendo relatados por profissionais, obrigados a organizar situações de aprendizagem em ambientes virtuais, produzir recursos didáticos, organizar aulas online, disponibilizar materiais de apoio com o uso de múltiplas mídias e linguagens, resolver problemas técnicos decorrentes do uso de plataformas ou aplicativos, etc. sem qualquer apoio institucional.

Fato é que a forma como a EaD está sendo adotada ativamente em nossas redes, escancara a ausência de planejamento por parte dos seus mantenedores, que esperaram a pandemia se instalar para tomar medidas frágeis e mitigadoras e o improviso é a manifestação primeira desta ausência de planejamento. Desta forma, não é inverossímil prever que a banalização da educação escolar e os prejuízos culturais que acarreta terão impacto significativo no desenvolvimento dos estudantes, vítimas primeiras dos resultados negativos que já estamos verificando.

É mister destacar, também, que a EaD, tal como tem sido implementada nas nossas redes está provocando a exacerbação dos processos de exclusão e de seleção ilícita dos estudantes na medida em que, mesmo nas escolas privadas, existe um número significativo de estudantes que ainda não dominam as novas tecnologias, não têm acesso a computadores ou mesmo Internet em suas casas. Esta situação agrava-se mais ainda nos bairros periféricos das cidades e, sobretudo, nas zonas rurais dos municípios paraenses.

Não é aceitável que as redes públicas e privadas de educação apostem na EaD como estratégia de garantia de acesso ao ensino e desconsiderem a realidade socioeconômica do estado do Pará que, conforme a pesquisa Síntese de Indicadores Sociais, divulgada em outubro de 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontava que em 2018, 998.634 paraenses viviam com menos de R$ 145 por mês. A pesquisa também demonstrou que aproximadamente 3.749.109 pessoas (44,3% da população do Pará), constituía a parcela da população considerada pobre, vivendo com menos de US$ 5,50 por dia (R$ 420 por mês). No geral, o Pará possui a quinta população mais pobre do País. E esta população não tem acesso à Internet, não obstante as crianças e os adolescentes dessas famílias estarem frequentando as escolas.

Os dados colhidos pela pesquisa TIC Domicílios, de 2018, disponíveis no Observatório do Direito à Comunicação, apontou que mais de 50% dos domicílios brasileiros estão desconectados à Internet. Na Região Norte, este número sobe para 74%. Nas áreas rurais brasileiras 85% das residências não têm acesso a essa tecnologia. Também, merece destaque o fato de que apenas 8% das casas de classe D e E possuem
acesso à Internet. A pesquisa também demonstrou que, apesar do número de conexões à Internet via celular ser muito maior do que o acesso domiciliar, a grande maioria desses usuários só conseguem conexão pela tecnologia 3G, por meio de planos com baixas franquias de download, o que precariza a navegação e leva ao corte da conexão após seu consumo, fora o fato de que a estabilidade do serviço e a qualidade do sinal também deixam a desejar em comparação às conexões fixas. Esta realidade revela que, levada como substitutiva do ensino presencial e sem a preparação adequada, tal como tem corrido, o uso da EaD tende a aumentar as desigualdades educacionais, em prejuízo da população escolar mais pobre.

É necessário também enfatizar que os mantenedores não podem, mais uma vez, desconsiderar a existência dos estudantes com deficiência que nelas se encontram estudando e que, pelo que se percebe, estão sendo esquecidos, invisibilizados e marginalizados neste tipo de iniciativa.

Pelas questões apontadas, defendemos que a EaD, tal como vem sendo ofertada, seja suspensa e que um planejamento sério e efetivo do ano escolar de 2020 seja realizado.

Finalmente, é importante ressaltar que o ano letivo de 2020, em razão da situação atípica pela qual estamos passando, não pode ser encapsulado no ano civil de 2020. Que o planejamento das aulas não se faça baseado no ano civil e não seja por ele limitado.

O Conselho Estadual e os Conselhos Municipais de Educação precisam assumir seu protagonismo e promover este urgentemente debate, sob pena de, mais uma vez, vermos na educação escolar, as grandes e importantes questões pedagógicas serem desprezadas em razão dos mesquinhos interesses econômicos.

É necessário sempre lembrar que, especialmente na Educação Básica, a Educação a Distância não substitui as ricas experiências proporcionadas pela vivência e trocas que são inerentes ao espaço escolar.

Belém, 22 de abril de 2020

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